Judeus sefarditas: identidade e regresso

 



Passados dois anos sobre a controversa atribuição da cidadania portuguesa a Roman Abramovich, e considerando os milhares de pedidos de naturalização recebidos nos últimos anos, o governo português decidiu que o mês de dezembro será a derradeira oportunidade para os descendentes de judeus sefarditas expulsos no passado obterem a cidadania portuguesa. O governo alega que os oito anos em que a lei vigorou foram suficientes para cumprir a reparação histórica. Mas porquê oito anos e não nove, ou outra qualquer duração? E porquê acabar terminantemente com a lei? Esta polémica remete para questões profundas sobre a identidade judaica, nomeadamente a sua ligação com Portugal. Viajemos um pouco pelo passado para compreender o presente.

A identidade do povo judeu construiu-se nas fugas, mas também nos regressos. Ao sobejamente conhecido primeiro grande movimento de fuga do Egito – o Êxodo – corresponde um não tão notório, mas significativo, regresso à cidade egípcia de Elefantina no século VI a.C.. Paralelamente, a fuga massiva de Portugal entre os séculos XV e XVI tem sido respondida, nos últimos anos, com a naturalização de mais de 50 mil descendentes de judeus sefarditas. O Egito, tal como Portugal, ou outro qualquer país onde ocorreram pogroms, apresenta-se simultaneamente como um lugar de trágica memória, mas também como um berço áureo que volta a acolher.

Tal como acontece com outros povos, cuja construção identitária ocorreu em vários períodos da história, influenciados por etnias e culturas estrangeiras, também o povo judeu foi impactado por egípcios, gregos, romanos e, posteriormente, por uma miríade de outros povos.

Foi na diáspora europeia que surgiram os dois mais numerosos subgrupos étnicos de judeus, com culturas e línguas próprias: no centro e leste europeu, os asquenazes, falantes de yiddish; e na Península Ibérica, os sefarditas que comunicavam entre si em ladino. De modo semelhante, na remota diáspora de há mais de dois mil atrás, também os judeus de Elefantina trocavam o hebreu pelo aramaico.

Apesar do judaísmo ser uma religião, ser-se judeu é na verdade um tema étnico, podendo haver judeus crentes, ateus, agnósticos ou até de outras religiões. Não obstante, a sua etnicidade é historicamente aberta a outras culturas. Por exemplo: foi até possível ser-se culturalmente judeu e romano durante o turbulento período de conflito entre os dois povos, como o célebre caso do historiador judaico-romano Flávio Josefo. A história está repleta de exemplos e Portugal não é exceção com os casos notáveis de Afonso de Paiva ou Pedro Nunes.

A identidade sefardita, como ela é hoje em qualquer parte do globo, não existiria sem Portugal e Espanha; a sua singularidade face a outras identidades do mundo judaico, desenvolveu-se no contexto particular da Península Ibérica. Do mesmo modo, a identidade de Portugal é marcada pela influência sefardita, seja na grande Lisboa ou na pitoresca Belmonte.

Num momento em que Portugal vive um verdadeiro êxodo da geração de portugueses com mais formação de sempre, revela-se crucial não só estancar a saída dos nossos primus inter pares mas também atrair aqueles que têm uma ligação ao país, como é o caso dos judeus sefarditas.

O imparável brain drain de cidadãos portugueses aliado ao fim da chamada lei dos judeus sefarditas não augura nada de bom para o futuro dum país que parece ser atrativo sobretudo para nómadas digitais, assalariados de empresas com sede fora do país, e imigrantes menos qualificados e mais pobres, disponíveis a trabalhar pelos baixos salários que se praticam em Portugal em troca de condições básicas que escasseiam nas suas pátrias.

A posição do governo enquadra-se nas irregularidades ocorridas com Abramovich e em casos análogos de atribuição da nacionalidade a indivíduos sem qualquer ligação a Portugal e que, até à entrada em vigor da lei, nem sequer sabiam da sua ascendência sefardita. Mas a prudência aconselha a repensar e melhorar a lei em questão e não acabar com ela, sob pena de afastar todos aqueles que de facto se identificam como sefarditas e que querem participar no futuro de Portugal.


David Pimenta (Artigo também publicado em: 

https://www.publico.pt/2023/09/02/opiniao/opiniao/judeus-sefarditas-identidade-regresso-2061882)

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