O ano de 2023 e o futuro próximo
O ano de 2023 foi especialmente marcante para a democracia portuguesa, tendo terminado com a invulgar queda de um governo de maioria absoluta, na sequência da abertura do processo de investigação aos negócios do hidrogénio e lítio. A relevância e mediatismo do acontecimento não faz, contudo, esquecer acontecimentos nacionais e internacionais que continuam a impactar Portugal em termos sociais, culturais, políticos e económicos, independentemente de quem esteja ao leme da nau governativa portuguesa.
Um
dos temas cimeiros foi (e é) a crise da habitação – um tema que alimentou
acesos debates parlamentares e na sociedade civil, manifestações de rua e
produção de legislação que se revelou infrutífera. O incipiente investimento
público aliado às alterações legislativas que o setor privado encarou como
desincentivadoras, não resolveram o problema do lado da oferta. Do lado da
procura, importa considerar que Portugal está inserido no Espaço Schengen, onde
circulam livremente capitais e cidadãos de países mais ricos que querem viver
em Portugal inflacionando, inevitavelmente, o preço dos imóveis. Antevê-se que
o debate futuro sobre a crise da habitação inclua o debate duma crise mais
antiga – a crise dos salários baixos; passados quase 40 anos da adesão de Portugal
à UE, é incompreensível para muitos cidadãos que a economia nacional ainda não
tenha sido alvo das transformações necessárias para a criação de incentivos de
mercado, que resultem no pagamento de pagar salários ao nível de outros
estados-membros. Em suma, se o salário médio nacional estivesse alinhado com os
valores praticados nos restantes países da Europa ocidental, a crise da
habitação, como outras crises, não seria tão severa.
Em
termos internacionais, 2023 começou com a eleição brasileira e, posterior,
ataque ao Congresso do Brasil. Estes acontecimentos enquadram-se numa lógica de
violenta polarização política que tem tido um impacto significativo em Portugal
– um país envelhecido, marcado pelo fenómeno do brain drain e que é hoje
o segundo estado do mundo com mais imigrantes brasileiros, em termos absolutos.
Com a diáspora brasileira, chegou também a política brasileira; a visita de
Lula da Silva nas celebrações do 25 de Abril e a exaltação de ânimos no
parlamento e nas ruas representaram um exemplo paradigmático do confronto entre
os apoiantes de Lula e Bolsonaro, apimentado pelo interesse eleitoral do Chega
em ganhar o apoio de bolsonaristas.
Outro
caso de polarização política próxima a Portugal, foram as eleições em Espanha.
O acordo entre o PSOE de Pedro Sánchez e as forças nacionalistas catalãs,
contemplando a amnistia política, o perdão de 15 mil milhões de dívida à
Catalunha e a possibilidade de referendar a independência da região no
horizonte próximo, reacendeu as divisões entre esquerda e direita e entre
regionalismo e centralismo, que marcam a Espanha desde a guerra civil. O
contexto é muito diferente do português, mas os impactos deste lado da
fronteira serão sempre sentidos.
O
ano de 2023 ficou também marcado por uma vigorosa, e por vezes inesperada,
viragem eleitoral à direita em vários pontos do Ocidente, nomeadamente na Nova
Zelândia, Argentina e Países Baixos. Em 2024, é expectável que esta tendência
continue a ganhar força com uma probabilidade elevada de serem registadas
vitórias, ou bons resultados eleitorais, da direita radical nos EUA, na
Áustria, em alguns estados alemães e também em Portugal. A 10 de março de 2024,
Portugal vai a votos e, à data de hoje, todos estudos de opinião indicam uma
viragem ao centro-direita, presidido pelo PSD com apoios do CDS e IL. O Chega
poderá vir a ocupar a posição de kingmaker, influenciando a condução
política do país e tendo o poder de manter ou derrubar o governo. Também nas
eleições europeias de 2024 é esperado um aumento significativo de deputados dos
partidos europeus ID e ECR, considerando a dominante popularidade dos partidos
de Marine Le Pen, Georgia Meloni e congéneres de outros países.
Em
França, os duros protestos relativos ao aumento da idade da reforma relembraram
os portugueses da galopante ameaça de falência do estado social europeu, tal
como o conhecemos hoje em Portugal. Trata-se dum tema central que tem entrado
no debate nacional via escola pública e SNS e que, mais tarde ou mais cedo,
independentemente de taticismos eleitorais, vai-se alastrar a outras áreas.
Ao
interminável conflito militar entre a Rússia e a Ucrânia, juntou-se uma
escalada perigosa do conflito Israel-Palestina que confirmou a já habitual
falta de preponderância geopolítica de Portugal e da Europa, sempre dependente
da liderança norte-americana.
Por
fim, o ano de 2023 é também um ano de confirmação de duas vagas que já impactam
e prometem mudar não só a dimensão política, mas a própria vida no planeta: as
alterações climáticas e a transformação tecnológica, nomeadamente a
inteligência artificial (IA). No que respeita ao clima, 2023 revelou-se
preocupante: a intrincada COP28 coincidiu com o ano mais quente desde que há
registos e não existem modelos capazes de prever com total certeza como será o
futuro, que se advinha cada vez mais negro. Relativamente à IA, a incerteza
parece não ser menor; apesar do acordo provisório para a primeira regulação da
IA na EU, estão por ser definidos modelos de governance e regulação efetivos
sobre as questões do uso, segurança e privacidade de sistemas de IA cada vez
mais complexos e capazes de criar conteúdos realistas, por vezes indistintos da
realidade, em diversas áreas, incluindo na arena política. No futuro próximo os
impactos das alterações climáticas e IA advinham-se estruturais nas migrações
humanas, no mercado de trabalho e também na qualidade das democracias.
David Pimenta (Artigo também publicado em:
https://www.publico.pt/2023/12/27/opiniao/opiniao/ano-2023-futuro-proximo-2074915)

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