O novo velho multilateralismo americano
Desde a sua fundação, que os EUA
têm oscilado entre o isolacionismo e o multilateralismo face ao resto do mundo.
Frequentemente o multilateralismo americano culminou em intervenções bélicas, marcadas
por estratégias de saída apressadas que deixaram vazios de poder complicados de
gerir. Só a história irá revelar a natureza e consequências do novo velho multilateralismo
que tomou recentemente o seu lugar com a eleição do presidente Joe Biden.
O presidente Biden é um veterano
em política externa e mostra-se já muito comprometido na dimensão internacional
da política, apesar dos imensos fogos internos de uma América dividida e de uma
pandemia por resolver. O ex Chairman do Comité do Senado para as Relações Externas,
rodeou-se por veteranos em política externa como John Kerry e Antony Blinken (a
ocupar o importante cargo Secretário de Estado), e trouxe de volta o clássico
multilateralismo norte-americano que irá ser posto à prova em diversas frentes.
No complicado Afeganistão,
espera-se o cumprimento do acordo promovido por Donald Trump, realizado com os
Talibãs, para retirada dos 2500 militares norte-americanos que ainda se
encontram no terreno e o estabelecimento de um cessar fogo permanente. Atualmente
é incerto que a administração Biden irá cumprir os prazos estabelecidos, o que
pode resultar num reacendimento perigoso da mais longa guerra americana.
Relativamente ao conflito
israelo-palestiniano não existem, para já, grandes novidades no horizonte face
à linha seguida pela administração Trump. Por enquanto, o sinal mais notório é
o de que os norte-americanos mantém o reconhecimento de Jerusalém como capital
de Israel. Em setembro do ano passado, Donald Trump promoveu os históricos
Acordos de Abraão que reconfiguraram o xadrez do Médio Oriente através de uma
aliança israelo-sunita, considerando o inimigo comum iraniano. Neste contexto, o
compromisso de Biden para retoma das conversações com o Irão, sobre o acordo
nuclear, poderá não ter quaisquer resultados práticos.
Na guerra civil do Iémen, a administração
Biden não demorou a alterar a posição norte-americana: desconsiderou os Houthis
como organização terrorista e cancelou o apoio à intervenção saudita no
conflito. Ainda não é claro o alcance destas decisões, mas poderão significar
um gesto de boa vontade e um trunfo para futuras negociações com um Irão cada
vez mais isolado.
No que concerne à relação com a
Rússia, Biden clarificou que não irá tolerar mais interferências do regime de
Vladimir Putin, prometendo atuar de forma assertiva face a qualquer ingerência
russa na democracia norte-americana, demarcando-se da inação da administração
Trump relativamente às polémicas eleições de 2016. Em termos práticos, os EUA
renovaram recentemente o START (Strategic Arms Reduction Treaty) com a
Rússia, com o objetivo de monitorar e controlar a política de armamento russa.
Biden e Blinken já começaram
também a trabalhar o restauro da confiança entre os blocos americano e europeu,
procurando concretizar alianças para fazer face ao poderio russo e chinês. Para
muitos americanos, a China ocupa hoje o lugar que a União Soviética ocupou até
ao final da Guerra Fria. Apesar de não ter ainda um comprovado poder militar para
disputar estrategicamente vários pontos do globo, o regime de Xi Jinping tem a
força dos números da demografia e da economia. Sendo concorrentes pelo poder
que exercem no mundo, as duas megapotências poderão, simultaneamente, aproximar-se
no que toca ao combate às alterações climáticas e ao fim da guerra comercial,
que custou caro especialmente aos produtores agrícolas norte-americanos.
Acrescente-se ainda que os EUA voltaram a alargar a sua esfera de influência no
clima e na saúde, com o regresso ao Acordo de Paris e no apoio à Organização
Mundial de Saúde.
Ao contrário do passado glorioso
e imperial de algumas nações europeias e asiáticas, os EUA não sofrem de nostalgia
de poder. Contudo, considerando a sua emergência enquanto país mais poderoso do
mundo, especialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, os
norte-americanos conquistaram um desígnio de liderança e tornaram-se na força
motriz de uma verdadeira ordem internacional representativa da democracia
liberal ocidental. O multilateralismo americano vive da conceção de que o mundo
é menos caótico e conflituoso e mais próspero com uma liderança ocidental, encabeçada
pelo único país com o poder suficiente para tal – os EUA. Neste sentido, a
política externa norte-americana irá voltar o seu foco para a defesa dessa
ordem internacional, que não se limita apenas aos interesses diretos dos EUA,
exercendo poder e influência em várias regiões do mundo e em diversos fóruns
internacionais.
Tal como todos os presidentes
antes dele, Joe Biden promete mais e melhor. As iniciativas do recém-eleito
presidente mostram claramente um reposicionamento dos EUA de volta ao
multilateralismo e reforço do respeito pelas normas internacionais, mas é a
realidade geopolítica que vai determinar o seu sucesso.
(Artigo também publicado em:
https://www.publico.pt/2021/

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