Rússia e Ucrânia – uma questão de identidade
Se em Portugal as temperaturas invernais continuam habitualmente amenas, apesar duma campanha eleitoral com alguma faísca ideológica, na Ucrânia a temperatura política aproxima-se dos níveis mais altos registados no planeta. Não é por menos considerando que, segundo os serviços secretos norte-americanos, a Rússia prepara-se para invadir o território ucraniano dentro de algumas semanas. A análise completa do fenómeno, que pode e deve ser visto de vários prismas, exige também uma reflexão sobre a fundamental questão identitária.
Na Europa pré Segunda Guerra
Mundial existiam populações de etnia alemã espalhadas por todo o leste europeu.
Neste sentido, e com o pretexto de defender e apoiar a diáspora germânica, a
Alemanha nazi iniciou a sua campanha militar a leste e o resto é história. Ao
contrário da grande maioria dos alemães que deixou o leste europeu após 1945, na
Europa pós colapso da União Soviética, milhões de russos mantiveram-se em
inúmeros territórios onde historicamente habitavam; e a Ucrânia é precisamente
o país onde se encontra a maior comunidade russa fora da Rússia.
Para além dos conhecidos laços
económicos entre a Rússia e a Ucrânia, existem laços identitários
particularmente fortes que estão na base dos dois países. A história da sua
identidade comum é bem mais antiga que o período soviético, é uma história
ancestral que nos obriga a viajar no tempo até ao nascimento dos russos
enquanto grupo étnico e da Rússia enquanto nação.
Juntando aos factos históricos
provenientes de fontes credíveis, a memória duma nação resulta também da
narrativa interpretativa do passado. Um exemplo dessa narrativa é o modo como
Vladimir Putin encara a Ucrânia; nas suas palavras, e citando o antigo general
russo Anton Denikin, a Ucrânia é uma “pequena Rússia”.
Relativamente à história
propriamente dita, é hoje aceite que os russos têm o seu berço ligado às
cidades de Novgorod e Kiev e a dois povos: os eslavos e os varegues (ou
varangianos).
Os eslavos, um povo indo-europeu proveniente
da estepe euroasiática, ficaram para a história como os grandes povoadores do
leste europeu, estando na origem da maioria dos grupos étnicos que constituem
os atuais Estados desse espaço geográfico. Os varegues eram germânicos de
origem escandinava que, antes das conquistas de Novgorod e Kiev, se dedicavam a
atividades típicas da cultura viking, empregando-se como piratas, comerciantes
e mercenários no exército e guarda imperial bizantina (seguindo a velha
tradição romana de empregar germânicos para o corpo de proteção dos imperadores).
Apesar do debate académico não
ser consensual sobre este período histórico, entende-se que os varegues eram
uma elite sociopolítica e militar que liderou os eslavos habitantes da região e
acabou por se “eslavizar” com o passar do tempo (fazendo lembrar o processo de
aculturação de visigodos e suevos na península ibérica). Três das personagens
mais importantes para o momento fundacional da Rússia foram: Rurik, um varegue de
etnia rus, governante de Novgorod e fundador duma dinastia de líderes responsáveis
pela expansão territorial que se seguiria; o príncipe Oleg, sucessor de Rurik,
que conquistou Kiev e fundou o Reino de Kiev (ou Rus de Kiev) no século IX; e
Vladimir “o Grande”, que consolidou as fronteiras do reino e cristianizou a
população.
Entre os séculos IX e XIII, Kiev foi
a capital da extensa porção territorial do Reino de Kiev – uma confederação de
tribos eslavas que hoje tem um lugar cativo na memória coletiva de russos,
ucranianos e bielorrussos, como sendo a origem da sua pátria no sentido terreno
e espiritual (considerando a adoção do cristianismo ortodoxo).
Passando para acontecimentos mais
recentes, o fim da União Soviética marcou o início dum período em que vários
Estados embarcaram na construção de narrativas nacionais, no âmbito da
construção e/ou consolidação duma identidade nacional. Neste sentido, o
primordial Reino de Kiev passou a ser disputado pela Rússia e Ucrânia como
sendo um exclusivo de uma ou outra narrativa: para o nacionalismo russo, o
reino é parte integrante da história da Rússia; para o nacionalismo ucraniano,
o reino trata-se do primeiro Estado independente ucraniano que se formou antes
da existência da própria Rússia.
A disputadíssima Crimeia é também
alvo da guerra de narrativas. Putin e a Igreja Ortodoxa Russa consideram a
região como terra sagrada russa, associada ao batismo de Vladimir “o Grande”.
Para além dos óbvios motivos
geopolíticos e geoeconómicos, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia é também
uma guerra de narrativas ligadas às identidades nacionais que, tal como outros
conflitos europeus, têm a sua origem na Idade Média.
A resolução da crise entre os
dois países exige um conhecimento profundo e especial sensibilidade relativamente
às narrativas identitárias em confronto. As negociações diplomáticas não deverão
ser limitadas aos temas do espaço de influência da NATO, ou do controlo pelo
gás natural. A mitigação efetiva do conflito entre a Rússia e a Ucrânia passa
por levar para a mesa de negociações o entendimento do conflito identitário das
duas nações, sabendo que para construir o futuro é necessário compreender o
passado.
David Pimenta (Artigo também publicado em:
https://www.publico.pt/2022/01/26/opiniao/opiniao/russia-ucrania-questao-identidade-1993156)
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